"ciclope”
No embate entre Odisseu e o ciclope Polifemo, um dos episódios mais conhecidos da Odisseia, a ilha dos ciclopes é o campo de batalha entre o anonimato e a monstruosidade. Anonimato dissimulado de Odisseu – que, com sua astúcia, engana o gigante monocular devorador-de-homens. Depois de ter sido cegado com uma tora em chamas, Polifemo acusa o seu malfeitor simplesmente pelo nome de “Ninguém”. Seus conterrâneos ciclopes assim julgam que Polifemo sofre de alguma insensatez infligida pelos deuses, e recomendam orações para amenizar seu sofrimento. Privado da visão, que projeta os seus sentidos no espaço, o monstro encerrado no escuro do crânio é separado também do amparo da sua vizinhança. É o seu traço mais monstruoso – um olho só – que viabiliza a mutilação por Odisseu. Se o rosto abrigasse dois imensos globos oculares, ele certamente despertaria quando o herói perfurasse o primeiro, despachando-o antes que esse tivesse tempo de furar o segundo. Desse ponto de vista, Polifemo é vítima tanto de Odisseu quanto de seu corpo.
Numa outra versão do mito ciclópico – já que esse, como todo mito, tem tantas versões quanto são as vontades que levam alguém a narrar – encenada na sátira Ciclope, de Eurípides, a vontade de Polifemo de comer Odisseu é tingida de conotações homoeróticas. Conotações que foram heterossexualizadas em variantes posteriores, que fazem de Polifemo o amante impossível da ninfa Galateia. Em todas essas iterações, no entanto, o corpo do gigante é o sítio onde punição, desejo e monstruosidade se enlaçam. A esse enodamento acrescenta-se outra dimensão recorrente: a do gozo da plateia – que ouve, lê, assiste ou escuta – com o padecimento do ciclope.
Com Ciclope, Raphael Tepedino acrescenta outra dobra nesse tecido de relações. Confinado numa caixa de ferro ambientada como um escritório corporativo pela duração de um dia de trabalho, o artista se presta à execução de uma façanha física, mas também à criação de uma obra a ser vista: aqui, pelo olho monocular da câmera que transmite o interior da caixa; de outra forma, ela restaria vedada aos olhos dos que estão de fora. Caixa-preta ou cabra-cega numa introspecção estranhamente extrospectiva.
Considerando a dimensão ciclópica dessa performance, somos levados a pensar num rebatimento de olhares e de condições de visibilidade – rimas parciais com a cegueira de Polifemo. A objetiva da câmera é um análogo do olho cegado do monstro, e é justamente esse olhar que nos põe na posição de espectadores de uma monstruosidade confinada, como se olhássemos um bicho preso numa jaula, atentos à energia represada nele que impõe na circunstância um perigo latente. Nessa ameaça ambiente, o monstro é o artista que se expõe mas é monstruosa também a situação espectadora. Aqui, a ambientação de escritório e os seus lastros sociais normativos são exibidos no registro da exotização voyeurística, como alteridade observada de uma distância segura, coisa que reforça o gozo vicário com a extenuação de outrem.
Há também um componente irônico nessa exaustão de Tepedino. Uma referência à retórica de “superação de si” que orienta certas pseudo-pedagogias tipicamente neoliberais: a meditação corporativa guiada, o zen empresarial, a ioga no retiro dos funcionários exaustos do fundo de investimentos. Não sem um bom componente cínico, recorrem a um repertório de referências culturais tidas como esotéricas para amparar uma condição contemporânea desancorada de orientações rituais, ou, se quiser, de mitos produtivos para a imaginação coletiva que deem sentido à lida diária.
A performance, que aposta no sentido de “desempenho” embutido na própria palavra, aponta para alguns dos regimes discursivos, visuais e sociais que rondam a exploração contemporânea do trabalho. Há algumas ramificações nessa relação do “trabalho” com o trabalho; tanto no sentido do emprego quanto do dispêndio de energia. Aqui, ocorre uma torção em que a demora, a inércia e o confinamento se fazem laboriosos: permanecendo parado, o artista não para de se exaurir. Executando processos básicos, monótonos e protocolares, ele encena incessantemente a repetição rotineira.
O drama do corpo de Tepedino e sua provação resvalam na cegueira de Polifemo, preso ele também no espaço circunscrito de uma percepção sem imagens. Consumimos essa alienação, certo, e comemos com os olhos um cansaço imenso, mas nisso desperta uma vontade de amparar aquele que padece, não obstante o seu isolamento radical. Ao redor da caixa instaura-se uma consciência angustiante da inação e da passividade da contemplação, e sentimos o espaço imantado do desejo de pôr abaixo suas paredes.
texto de Pedro Köberle